Postagens

Mostrando postagens de junho, 2025

Doces surpresas

  Terceiro dia de esteira, e ele ainda assombrava meus pensamentos. Decidi seguir como da última vez: encarar o desconforto da caminhada sem música, sem celular, sem distrações. Comecei austero, firme, suportando o incômodo já conhecido, mas agora consciente da minha capacidade de atravessá-lo. Assim como o desconforto de perdê-lo. Eu suportaria, e com o tempo também me acostumaria. Até que, nos cinco minutos finais, uma música me surpreendeu. Minha mãe colocou para tocar, e resolvi aceitar aquele presente. Foi quando percebi que não preciso ser tão rígido comigo mesmo. Nem tudo precisa ser campo de batalha. Tenho essa tendência de acreditar que tudo só tem valor se for conquistado com dor, como se o esforço extremo validasse a jornada. Mas eu não preciso, como a personagem de *Livre*, percorrer sozinha milhares de quilômetros pela Pacific Crest Trail, uma perigosa trilha que liga o México ao Canadá, para me perdoar. Às vezes, pessoas — ou a própria vida — oferecem pequenos amortec...

As horas. A dor e o tempo

  Hoje foi o segundo dia em que subi na esteira depois muito tempo sem caminhar. No primeiro dia, passei praticamente os trinta minutos no celular. Sem fones, sem música, sem distrações sonoras, e talvez por isso mesmo, mergulhado no medo dos ecos da própria mente. Era como se eu estivesse correndo de mim mesmo. Hoje, novamente comecei a andar com o celular na mão, como quem segura um escudo. Mas em algum momento, decidi guardá-lo no bolso. Lembrei dos tempos em que, no ashram, eu me sentava forçadamente para meditar: quinze minutos, duas vezes por dia. No início, o silêncio era insuportável, como uma sala cheia de espelhos onde a imagem que se devolvia era crua demais. Mas, com o tempo, o que assustava começou a oferecer caminhos. Encarar os próprios pensamentos nos torna íntimos deles, e o que antes parecia um labirinto vai se revelando um mapa. Hoje eu tinha um motivo real para fugir: a dor do afastamento repentino de um amigo querido, que me pediu um tempo. A ausência dele puls...

Netanyahu, a guerra e o colapso da verdade

  por Daniel Carvalho  Benjamin Netanyahu enfrenta hoje um dos momentos mais turbulentos de sua longa trajetória política. Pressionado por todos os flancos, o primeiro-ministro israelense vê sua base interna fragmentar-se entre exigências cada vez mais radicais e protestos contra o que muitos consideram uma deriva autoritária sem precedentes. De um lado, sua coalizão, dominada por partidos da extrema-direita e grupos ultranacionalistas religiosos, exige medidas ainda mais severas, movidas não por justiça, mas por sede de domínio e revanche. De outro, o centro político e diversos setores da sociedade civil se manifestam contra os abusos em Gaza e denunciam os riscos de um colapso institucional, com o Judiciário sob ataque e a democracia israelense sendo minada por dentro. Fora das fronteiras de Israel, o cenário também se deteriora. Países europeus, organizações de direitos humanos e até aliados históricos como os Estados Unidos começam a endurecer o discurso. Investigações...

Meu coração vagabundo

Por Daniel Carvalho                                                            Coração de Rua Como um bicho de rua,   aceito o que foi descartado,   me junto àqueles que têm fome.   Procuro um dono.   Preciso da sensação de pertencimento. Projeto qualidades em pessoas que nunca as cultivaram.   Crio verdades frágeis — mas que fingem ser necessárias.   Me apoio em terceiras pernas: me imobilizam, mas evitam a queda.   Sigo, mesmo sem amor. Talvez na próxima festa,   no silêncio da próxima escuridão,   depois da curva da noite,   em algum lugar de onde nem sei mais o caminho de volta. Sinto saudade do que é inútil.   Do que não serve.   Da falta que ganha corpo.   Ainda amo com o corpo inteiro — e às vezes morro por isso. Sou vulnerável ao amor.   Ao toque que arrepia a pe...

Ainda Alice: Feliz Dia dos Namorados

Feliz Dia dos Namorados Houve um tempo em que o mundo ao seu redor parecia desmoronar. E tudo o que eu pude — tudo o que eu quis — foi te acolher com os braços abertos, mesmo sem saber ao certo como curar. E assim fomos nos encontrando um no outro. Você me faz querer ser alguém melhor. Estar com você é viver no ritmo da intensidade — como se cada segundo carregasse mil futuros possíveis. Com você, a vida pulsa mais forte, e a gente sente o sangue nas veias lembrando que está vivo. Você talvez não perceba, mas tem a alma de um sábio. Te observar é aprender: como você encara os desafios com foco e coragem, a disciplina com que cuida do seu corpo, como quando você afirma com segurança: “sou R I e vou conseguir.” Me encanta seu otimismo, e esse jeito direto, leve e descomplicado de lidar com os problemas — sem drama, sem peso, sem demora. E não tem como falar de você sem falar de sua beleza. Ela não se esgota no espelho. Um corpo esculpido pelo tempo e pelo cuidado, mas são os olhos — inte...

Entre o Delírio e o Discurso: Como a Loucura Foi Representada por Machado de Assis, Caio Fernando Abreu e Glória Perez

Entre o Delírio e o Discurso: Como a Loucura Foi Representada por Machado de Assis, Caio Fernando Abreu e Glória Perez Por Daniel Joaquim de Carvalho A loucura sempre nos fascinou. Não apenas por aquilo que revela do outro, mas sobretudo pelo espelho que oferece de nós mesmos. Afinal, quem é realmente são? E quem decide? Neste texto, percorro três obras que lidam com a ideia de loucura sob perspectivas distintas — O Alienista, de Machado de Assis; o conto “Sargento Garcia”, de Caio Fernando Abreu; e a novela Caminho das Índias, de Glória Perez — e as leio à luz das provocações de Michel Foucault em A História da Loucura. 1. O Alienista: a sátira como crítica ao saber que enlouquece Em 1882, Machado de Assis publicou “O Alienista”, uma novela curta que satiriza o poder da ciência e sua ânsia por classificar comportamentos. O médico Simão Bacamarte funda a Casa Verde para estudar os “loucos” de Itaguaí. No entanto, sua definição de loucura se expande a tal ponto que quase toda a cidade é...

Amor: Da Pedra ao Fluxo

Texto em construção  por Daniel Carvalho Durante muito tempo, amor, para mim, era como em Os Sofrimentos do Jovem Werther: incondicional, idealizado, quase sagrado. A imagem da pedra de Bolonha, que guarda a luz do sol por um tempo, me marcou profundamente. Werther pedia ao mordomo que levasse a pedra até Carlota - era o que podia ter dela. Um reflexo. Um rastro de presença. O cinema alimentou esse romantismo. As Pontes de Madison, Vestígios do Dia, A Época da Inocência - todos me ensinaram a beleza do amor não concretizado. Não o não correspondido, mas aquele que existe mesmo sem se realizar. Amor platônico no melhor sentido: independente do outro para existir. Mas a vida tem outras gramáticas. A dor da traição, do abandono, do silêncio. Em Closer, vi o amor se despedaçar no olhar de Natalie Portman, quando sua personagem, frágil, pergunta: "Posso ainda te ver?". O amor como espelho se quebrava. E eu já não sabia o que via. Ao mesmo tempo - com filmes como Antes do Amanhecer...

Roda Gigante

  Roda Gigante  por Daniel Carvalho Estar apaixonado é quase sempre foda. Sou intenso demais.  Sinto tudo em excesso. Drama demais. Cancerianos.  Me lanço como um personagem de cartoon que se atira no abismo. E é difícil ser de outro jeito.  Desejar pouco. Amar com moderação. Não sei ser assim.  Garotos faziam fila no banheiro para encher os narizes de pó.  Música alta. Leques que se abriam. Risos altos e debochados. Copos,  corpos e canudos ao alcance dos que giravam na roda. Era como uma roda gigante onde só alguns eram escolhidos para girar.  Uma linha invisível separava os eleitos — os que tinham corpos esculpidos, anabolizados, os que tinham drogas, dinheiro ou status — dos que apenas assistiam a roda-gigante girar.  Eu estava num lugar intermediário. Sem definição. Sem lugar. Foi quando fomos para o after na boate ao lado. Ele chegou com seu  sorriso cortando o rosto como se não houvesse amanhã. Com sua marra suave, meio deboc...

Adeus. Viva la vida

por Daniel Carvalho O  que fiz para te afastar?   Teria sido minha ansiedade permanente diante de tudo o que é novo? O medo insistente de me perder? Essa marca em meu rosto — essa camada subcutânea de tensão —, esse olhar aflito, incompleto, quase sempre à beira de um colapso?   Talvez tenha sido o modo como vivo, com a sensação constante de caminhar à beira de um abismo, como se não fosse inteiro, mas apenas o negativo de uma outra pessoa que nunca fui.   Já estive em relações complicadas, que me arrastaram com crueldade. Outras, estéreis, me levaram à loucura. Você foi o único intervalo de felicidade que me convenceu — mesmo que por um segundo — de que o amor poderia me curar. Achei que, com você, a peça faltante em mim voltaria ao seu lugar original, e então tudo faria sentido.   Mas ela não voltou.   Eu tive você — e fomos felizes de um jeito que nunca imaginei ser possível —, mas eu já estava ferido demais. Vivendo como se tudo fosse acabar no instante...