Entre o Delírio e o Discurso: Como a Loucura Foi Representada por Machado de Assis, Caio Fernando Abreu e Glória Perez

Entre o Delírio e o Discurso: Como a Loucura Foi Representada por Machado de Assis, Caio Fernando Abreu e Glória Perez

Por Daniel Joaquim de Carvalho


A loucura sempre nos fascinou. Não apenas por aquilo que revela do outro, mas sobretudo pelo espelho que oferece de nós mesmos. Afinal, quem é realmente são? E quem decide? Neste texto, percorro três obras que lidam com a ideia de loucura sob perspectivas distintas — O Alienista, de Machado de Assis; o conto “Sargento Garcia”, de Caio Fernando Abreu; e a novela Caminho das Índias, de Glória Perez — e as leio à luz das provocações de Michel Foucault em A História da Loucura.

1. O Alienista: a sátira como crítica ao saber que enlouquece

Em 1882, Machado de Assis publicou “O Alienista”, uma novela curta que satiriza o poder da ciência e sua ânsia por classificar comportamentos. O médico Simão Bacamarte funda a Casa Verde para estudar os “loucos” de Itaguaí. No entanto, sua definição de loucura se expande a tal ponto que quase toda a cidade é internada — inclusive ele mesmo.

Aqui, a loucura é uma convenção arbitrária. Não há essência no desvio, apenas um olhar clínico contaminado pelo desejo de controle. Foucault, em A História da Loucura, argumenta que o saber médico não é neutro: ele é ferramenta de poder, que nomeia, isola e silencia. Bacamarte representa exatamente esse saber que, ao tentar conter o caos, o multiplica.

2. Caio Fernando Abreu: a loucura como linguagem do excesso sensível

Em “Sargento Garcia”, conto publicado em Morangos Mofados, Caio Fernando Abreu aborda a loucura não como patologia, mas como lirismo. O personagem que dá nome ao conto parece habitar uma realidade paralela, povoada por delírios e amor. Mas o que poderia ser interpretado como desajuste mental, em Caio, torna-se expressão de uma sensibilidade radical.

Se em Machado a loucura é objeto de riso e crítica social, em Caio ela é ternura, abismo, poesia. O louco é aquele que sente demais. E, como diz Foucault, antes de ser silenciado, o louco era também aquele que podia falar com os deuses — era visionário, profeta, artista.

3. Caminho das Índias: o discurso médico em horário nobre

Na novela Caminho das Índias (2009), de Glória Perez, Bruno Gagliasso interpreta Tarso, um jovem com esquizofrenia. A trama acompanha seu diagnóstico, tratamento e o impacto da doença sobre a família. Diferente de Machado e Caio, aqui a loucura é tratada sob o viés da medicina moderna: é uma doença, com sintomas, tratamento e cura possíveis.

A novela foi elogiada por trazer o tema à tona com responsabilidade, mas também reforçou o modelo biomédico como única forma de compreender a loucura. Como diria Foucault, é o especialista quem fala — não o louco. A voz da experiência subjetiva é abafada pelo saber institucional.

Conclusão

Essas três obras — uma sátira literária, um conto lírico e uma novela de grande audiência — constroem imagens muito distintas da loucura. Em Machado, ela é um espelho distorcido da razão; em Caio, uma ferida luminosa; em Glória Perez, um quadro clínico.

A loucura, no fim, continua a ser um território em disputa: entre poesia e diagnóstico, entre liberdade e controle. Como nos lembra Foucault, compreender a loucura é também escutar aquilo que ela tem a dizer — mesmo quando o mundo insiste em calá-la.

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