A Substância: quando o discurso é potente, mas o cinema falha
A Substância: quando o discurso é potente, mas o cinema falha
A beleza que sangra é mais vendável do que a que cala. Mas o que dizer quando até o grito vira fetiche?
Coralie Fargeat queria explodir Hollywood com sangue feminino. E conseguiu. Só não percebeu que o estouro foi tão alto que ensurdeceu seu próprio discurso.
A Substância, celebrada como um marco do horror feminista, é um filme dividido entre intenção e forma. A proposta é clara: denunciar o culto à juventude, expor a mutilação simbólica imposta às mulheres que envelhecem, desenterrar os mecanismos patriarcais que associam valor ao viço. Tudo isso é necessário — e, talvez por isso, muitos hesitam em dizer que o filme fracassa na execução.
A primeira parte é uma sucessão de símbolos evidentes: o espelho, o cartaz, o vizinho zombeteiro, o corpo envelhecido filmado como ruína. Tudo grita “você está velha” — e grita tanto que o grito se torna ruído. Não há nuance. Não há progressão dramática. Há apenas uma repetição estética, como se o filme não confiasse na sensibilidade do espectador.
Mas o ponto de ruptura está na forma como a narrativa se constrói visualmente. Coralie Fargeat quer questionar o male gaze, mas adota uma linguagem que o reproduz. Como aponta a crítica Katarina Docalovich, da Paste Magazine, o filme “cai nas mesmas armadilhas que pretende satirizar, reforçando o olhar masculino ao explorar Margaret Qualley como objeto visual”.
A câmera percorre o corpo jovem com delicadeza luminosa, celebra a pele lisa, o andar sinuoso, os gestos entre o infantil e o erótico. O olhar, que deveria ser crítico, se rende à sedução da imagem. O que era para ser denúncia, flerta com o deleite. Não há rompimento formal — há reaproveitamento estético.
Isso se torna ainda mais evidente quando lembramos que Fargeat emergiu da mesma escola de cinema de horror francês que produziu obras como Martyrs e Alta Tensão — filmes marcados por uma violência contra o corpo feminino tão estilizada quanto brutal. Durante muito tempo, esse movimento foi acusado de fetichizar o sofrimento, explorando a dor feminina como espetáculo. Em Revenge, sua estreia como diretora solo, Fargeat parecia oferecer uma resposta: tomou o gênero do “rape and revenge” e o virou do avesso.
Mas em A Substância, ela retorna aos mesmos dispositivos visuais, à mesma estética do choque, do grotesco, da exposição sensorial extrema — só que agora revestida de um discurso de denúncia. E aí reside uma tensão incontornável: embora critique o olhar masculino que domina e molda o corpo feminino como objeto narrativo, a diretora opera, na forma, com ferramentas quase idênticas às que esse mesmo olhar consagrou.
A questão não é apenas o que se mostra, mas como se mostra — e aqui, a câmera desliza sobre Margaret Qualley com a mesma reverência estética que tantos outros cineastas, homens, já usaram para capturar a juventude e a beleza como fetiche. O olhar que era para ser distanciado, crítico, se contamina pelo mesmo encantamento visual. A imagem não se opõe ao que denuncia — ela se confunde com ele.
E o que dizer da escolha de elenco? Margaret Qualley não guarda qualquer traço da persona de Demi Moore. O suposto rejuvenescimento soa como substituição. O corpo novo não carrega memória do corpo antigo. A mulher jovem e a mulher madura não parecem jamais ter habitado o mesmo rosto, o mesmo trauma, o mesmo mundo.
No terceiro ato, o filme mergulha num espetáculo de gosmas, mutações e paródias corporais. O que era para ser metáfora se dissolve em farsa. Como disse o El Comercio, “o que começa como crítica termina como caricatura grotesca”. A monstruosidade não assusta — distrai.
Há cenas fortes, sim: a calçada da fama coberta de sangue, o espelho fragmentado, a figura da Medusa. Mas são fragmentos potentes num filme que não consegue articular suas partes. Momentos isolados de impacto que não sustentam a travessia.
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E a crítica aplaude.
Porque foi feito por uma mulher.
Porque tem coragem.
Porque diz o que é necessário.
Mas cinema não é só o que se diz.
É como se diz.
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Quando o filme denuncia um olhar, mas o incorpora, o gesto perde força.
Quando se quer romper com a linguagem, mas se usa a mesma paleta formal, a subversão não se cumpre.
A Substância quer ser um grito de libertação, mas tropeça no espelho.
E no reflexo, não está o monstro. Está o olhar que o criou.
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