Caixa Preta

2022: Caixa Preta

Foi a primeira a se levantar da poltrona do avião, quando este pousou em Paris. Os

olhos pareciam estar perdidos por detrás dos óculos vermelhos, que fitavam atentos os

contornos da janela. Pegou suas bagagens de mão, saiu da aeronave, guardou sua

máscara fluorescente e passou pela imigração. Um oficial francês que parecia um

homem cansado e sem sonhos a deixou passar sem muitas perguntas. Parou em um

Starbucks para tomar café: preto e bem doce, como gostava. Afundou-se no tecido do

sofá, como se este a engolisse. Decidiu de súbito se levantar e ao sair do aeroporto

olhou para o céu: - Que belo dia - sussurrou Luísa, as palavras não continham qualquer

verdade. Tinha alugado um carro elétrico e seguiu decidida até a Pont Neuf, só parando

para abastecê-lo em um eletroposto. Quando se dirigiu ao cacha para pagar, foi atendida

por um jovem homem de tez escura como o ébano, que parecia ser algeriano ou vindo

de alguma outra ex-colônia francesa e usava uma farda de um tom de azul, que parecia

aquele patenteado por Yves Saint Laurent. Ele chamou a sua atenção também pelos

músculos que se contraiam ao se apoiar sobre o balcão. Luísa foi tomada por calafrios,

mas rapidamente se puniu por tal tipo de desejo, afinal estava de luto e substituiu tal

sentimento por orgulho por ter se lembrado da informação da cor aprendida nas aulas de

Moda, que havia iniciado no último semestre. Ela havia criado esse sistema de auto

recompensa para lidar com a dor da perda do seu único filho.

Ao chegar na mais antigas das pontes que cruzam o Sena, ela se mostrou mais

imponente do que a famosa e preferida pelos turistas Alexandre III. Ela suspira

pensando na coincidência entre os nomes da outra ponte e do filho e começa a tentar

entender o porquê do seu filho ter escolhido tal ponte para derramar a primeira metade

das suas cinzas. Com a urna afogada nos peitos, e de olhos fechados, retira as cinzas e

as derrama, e logo elas desaparecem nas águas, agora, límpidas do rio. Ela fica

impressionada como a potência da natureza, de como tão pouco tempo foi necessário

para o rio se recuperar, sem a presença dos seres humanos. Enquanto as cinzas caiam,

Luísa foi sendo tomada por um desfalecimento e perde o equilíbrio. Os parisienses, que

começavam a se acostumar em não ter suas ruas, praças e pontes inundadas por turistas,

rapidamente reconheceram na como estrangeira, mesmo ela que havia cuidadosamente

escolhido um look para parecer uma local. Um casal de jovens franceses já a observava

com curiosidade tentando descobrir de onde ela era e o que ela faria com aquela urna

nas mãos. Ao perceber que ela estava prestes q cair, o rapaz a socorre rapidamente. Sem

querer, ela deixa cair a sua bolsa clutch, onde havia conseguido espremer o caderno

moleskine com os diários do seu filho com seu kit de maquiagem Mac, passaporte

dentre outros itens. Entra em uma breve crise de ansiedade. Ela, que desde o fatídico dia

em que recebeu a notícia da morte do seu filho, havia evitado de ler tais diários, agora

os tinha perdido. Por um golpe de sorte, era um sábado e agora, apenas nesses dias

bateux mouches circulavam o rio com turistas e o caderno caiu em cima de um dos

barcos. Aquelas palavras postas no papel era o que tinha de mais importante do seu

filho e ela entra em desespero, por não querer perder o seu filho por uma segunda vez.

Mas alguém da equipe do barco, com gestos e apontando para o seu celular, mostra para

o casal de franceses o nome da companhia e com a ajuda deles, ela consegue recuperá-

los, depois deles entrarem em contato com alguém da empresa dona dos pequenos

barcos. Ela então decide que este era um sinal de que precisava lê-los. Ela começa pelo

primeiro capítulo: Primeira Quarentena

Volta para o hotel, com vista para torre Eiffel. Ela ainda não acreditava o preço pago

pela suíte do Hotel, que mesmo no verão não estava com ocupação total. Era estranho

voltar a Paris sem seu filho. Ela que lutava para se concentrar nas aulas de História da

Moda, e com um foco que nunca antes havia tido, se concentrava em cada palavra que o

professor falava, tinha criado expectativas de rever a Paris que era tão citada por aquele

senhor que de tão plastificado parecia um Ken, da Barbie, mas tinha um conhecimento

admirável quando se tratava dos assuntos da sua disciplina. Envolta por lençóis

Trouissard, ela se sente confortável, como que se estivesse na casa dos seus pais. Luísa

sempre havia se sentido estrangera naquela mansão amarela mostarda, com três andares,

de pé direito altíssimo, telhados coloniais, e quartos que pareciam sair de um volume da

revista Architetural Digest. As enormes salas, com corredores amplos a assustavam,

mas em seu quarto, se sentia segura. Os lençóis do hotel a trouxeram para essa zona de

conforto do seu quarto e ela assim decide abrir o primeiro caderno. Este se iniciava com

uma frase: “II y a toujour quelque chose d’absent qui me tormente” (Camille Claudel.”)

- Há sempre uma ausência que me atormenta-

. Luísa cai em prantos ao lembrar da visita

que havia feito do museu do escultor Rodin, que foi amante da também escultora

Camille. O hotel que havia sido oficina do artista, agora albergava um museu, com uma

sala reservada às obras de Claudel. No dia da visita, seu filho foi um guia animado, que

a apresentou à obra dos dois. Ela continua a leitura e o ano era 2020.

Minha mãe assistia à um talk show, onde um famoso âncora de TV brasileiro era

entrevistado e aos poucos, as vozes dele, que me eram tão familiares por terem

anunciado momentos importantes da História do meu país, se tornam mais altas do que

as vozes de Billie Eilish, que cantava nos fones aos meus ouvidos. Eu escuto o

apresentador reclamar de agressões sofridas por telespectadores de extrema direita

que discordavam das posições políticas defendidas pela sua emissora. O meu primeiro

sentimento foi de raiva. Cria Cuervos. Karma is a bitch, baby. Vocês foram

responsáveis por criar essa polarização no país, por forjar ódio em uma nação contra

um partido de esquerda, que pelo fato de estar há 20 anos no poder e mesmo assim não

ter sido derrotado nas urnas, orquestraram um golpe judiciário e midiático para retirá-

lo do poder. Vocês ajudaram a eleger esse candidato de extrema direita.

Ao mesmo tempo, uma sensação de incomodo começou a me tomar. William Bonner

começou a falar que esse ódio o havia levado a se auto impor uma quarentena há quase

dois anos, em que evitava voos e locais públicos, para fugir de agressões que então

vinham de militantes de estrema esquerda. Eu que também havia me auto imposto uma

quarentena, bem antes da proclamada pelas autoridades do meu país, também para

fugir de agressões, comecei a sentir um sentimento desconfortável de empatia.

Uma pausa na leitura, a córnea dos seus olhos se apressava nas órbitas. Ela tentava se

lembrar dessa entrevista, mas não tinha qualquer recordação. E logo de William Bonner,

que havia sido seu crush desde que o viu pela primeira vez na TV. Ela se desfaz desse

pensamento e segue atenta a leitura.

Senti também uma contraditória felicidade por ouvir mais uma voz que não viesse da

oposição tradicional se somar ao coro de vozes que se opunham ao desgoverno do meu

país, o qual tanto temo. Coro esse que já contava com um amplo espectro do arco-íris

de vozes que vinham desde influenciadores digitais, a atores da TV, cantores populares

e eleitores arrependidos de Jair Bolsonaro.

Alexandre, ela pensou, sempre perdendo tempo com essas discussões inúteis sobre

política. Ao mesmo tempo, que era tomada por esse pensamento, que talvez fosse fruto

de uma tentativa de não ter que se posicionar e brigar com seus amigos e família, seu

peito se enchia de orgulho da coragem do filho e da lucidez que ele tinha para falar

sobre estes assuntos. Mesmo com o ar condicionado no máximo, ela sente calor, se

descobre, e volta a ler.

Essa pasta indigesta de sentimentos me fez lembrar de um episódio recente semelhante

que rimava com esse. De forma parecida, tive empatia ao assistir á uma entrevista de

uma famosa atriz, Regina Duarte, para uma outra emissora, por vê-la completamente

desequilibrada sendo trucidada pelo entrevistador. A antiga namoradinha do Brasil

havia se tornado secretária de Cultura do atual desgoverno e defendia posturas

fascistas além de minimizar as mortes pelo Covid-9 para um desconcertado jornalista.

Eu que tinha uma natureza colérica e coração vulcânico e tantas vezes havia sido

colocado no papel de Judas pelos meus desequilíbrios sentia pena de alguém por quem

nutria ódio. Nas falas desconexas da atriz, se revelou uma insuspeita vulnerabilidade.

Algo em mim se reconheceu no que viu. Na minha quarentena pré pandemia, eu ainda

driblava o distanciamento social, e recebia amigos em casa. Mas agora, só tinha a

companhia de minha mãe e do eco dos meus pensamentos. Esses dois episódios me

fizeram lembrar de um conto de Clarice Lispector, chamado Mineirinho, que falava da

compaixão que ela sentia por um assassino, que havia sido morto pela polícia com 13

tiros. Para ela, 13 tiros para matar um assassino eram demais. No primeiro e segundo

tiro ela se sentia aliviada, no quarto se sentia desasossegada, no nono, no décimo sua

mão estava trêmula e no décimo terceiro tiro, ela era o outro. O assassino.

Eu começo a me questionar sobre a natureza da empatia e da compaixão. O que nos

leva a nos colocarmos no lugar do outro quando esse outro comete atos, os quais

condenamos veementemente. Eu agora me pergunto se precisamos realmente ter

sofrido o que o outro sofreu, em alguma medida, para tal. Isso me revelou que também

tenho sombras. Assim como aquela figura pela qual tinha desprezava, eu também tenho

a minha cota de pecados.

Ao mesmo tempo que podia perceber esse ódio na população narrado por Bonner nas

vozes de muitos, começava a notar em outros tantos, um sentimento de solidariedade

diante das crescentes mortes causadas pelo coronavírus. Cantores famosos faziam lives

para arrecadar dinheiro para os mais vulneráveis ao distanciamento social, que os

impedia de conseguir o seu sustento. Jovens se ofereciam para fazer compras para os

mais velhos. Idosos costuravam máscaras para os profissionais de saúde. Milionários,

bancos e grandes grifes faziam doações para os mais carentes. Diante disso e apesar

da enorme tristeza que sentia diante de tantas vidas perdidas, dos relatos agonizantes

de pessoas que nos seus momentos finais, comparavam o que sentiam a estarem

sufocadas dentro de uma piscina tentando respirar, das famílias desempregadas, da

fome que assolava o meu país, dos meus próprias medos e incertezas quanto ao meu

futuro, fui dormir com um sentimento de gratidão. Na cama, antes de pegar no sono, me

revolto sobre os lençóis e aquele sentimento é substituído pela, como se eu tivesse

agindo com a Justine do filme Melancolia de Lars Von Trier: é como se eu encontrasse

uma serenidade e alento diante de um momento trágico, mas apesar dessa oscilação de

humores, pego no sono rapidamente.

Luísa, ao contrário demora para conseguir dormir, relembrando das últimas noites no

hospital. Por vezes, o tempo não passava. Em outros momentos, ela chegava a esquecer

que onde estava. Hospitais agora pareciam mais com uma instalação da NASA e

confundia as luzes azul celeste dos corredores com as da piscina de um hotel. Mas logo,

o som do respirador artificial, a trazia de volta para onde estava. Ela pensa em alguém

para compartilhar o que estava sentindo, mas não tinha quem. Para suas amigas, seguia

a cartilha do seu psicólogo de não se demorar muito falando sobre a perda, para se

tornar alguém mais leve e com isso fazer rapidamente amizades. Na família todos agiam

como se a morte do seu filho fosse algo trivial, que não existia alguém na família, que

não experimentasse o luto pela perda de um ente próximo. Faziam isso para que ela não

alimentasse essa dor. Luísa colocou uma meditação guiada que seu filho costumava

colocar e assim pega no sono.

Acorda e o sol escapa pelas frestas da cortina semiaberta e decide tomar café da manhã

olhando para a Torre Eiffel. Ela ainda não havia se acostumado com o fato de insetos

fazerem parte do cardápio de um café da manhã, alimento que precisou ser introduzido

durante os períodos em que a fome assolou a maioria dos países e se tornou um

alimento apreciado por muitos, ainda agora quando não mais necessários. Ela desiste de

comer e decide ir para o lugar preferido pelo seu filho em Paris, a livraria Shakespeare

em Co, que havia sido cenário de um filme que ele adorava. Olhando as obras mais

vendidas, entre biografias de cientistas chineses que descobriram a vacina para os

diferentes tipos de covid-9, livros de autoajuda com estratégias para lidar com o luto,

livros sobre a cultura pleidiana e de outras raças extraterrestres, ela encontra uma

biografia póstuma da cantora brasileira Adriana Calcanhotto, que havia sido vítima da

breve ditadura que se instalou no Brasil com a renúncia de Bolsonaro. Ela que havia

voltado a morar no país e se tornado uma das vozes que lutaram contra a ditadura era

uma das cantoras favoritas de Alexandre. Ela compra o livro e vai para um café no

Marais para ler o diário do seu filho.

Acordo e como cada despertar tem sido desde que se iniciou a pandemia, este foi um

rito de entrada em uma vida que não mais me era ainda familiar. Acordei mal

humorado, e ao reler passivamente os acontecimentos do dia anterior, comecei a julgar

como carentes de empatia genuína tais movimentos de solidariedade. Em mim, surgia

uma certa confusão ao perceber que antes da pandemia, milhares de pessoas já

morressem de forma injusta, mas só agora, com um vírus que fosse capaz de atingir a

qualquer um, portanto fosse capaz de fazer com que qualquer pessoa se sentisse no

lugar do outro, despertasse nelas a consciência de que morrer de fome ou por falta de

cuidados médicos era injusto.

Antes, quando morriam milhares, vítimas de uma desigualdade social que agora se

mostra mais evidente, por guerras injustas ou por outras doenças que não pudessem

atingir a qualquer pessoa, os discursos eram diferentes. Grande parte das pessoas

achavam que o sistema era justo. E por trás desse discurso eu percebia uma lógica

perversa de dominação. Tal raciocínio podia ser remetido a ancestrais relações de

poder existentes entre os indivíduos, que já se manifestaram na forma de escravidão,

genocídios e guerras. Na contramão, ouvia discursos como -ninguém tem obrigação de

ajudar ninguém-

, o que me levaram a um estado de perplexidade e tristeza ainda

maiores. Enquanto ruminava tudo isso, que não conseguia traduzir em palavras, minha

mãe me observava e respondia as minhas mudanças repentinas de humor com espanto.

Uma das minhas crianças interiores havia morrido, e assim como muitas das vítimas do

coronavírus, eu não pude velar o seu corpo.

Luísa para um instante, enxuga as suas lágrimas, e resolve descer para comer algo.

Protegida pelas cortinas de plástico que separavam as mesas, para evitar contato entre os

seus clientes, ela chorava sem vergonha pois o plástico das cortinas esconderia suas

lagrimas. Ela que havia decidido não demonstrar sofrimento e só chorava trancada no

seu quarto ou dentro da piscina, onde suas lágrimas se misturariam com a água. A sua

criança, de 42 anos havia sido velada, mas não tinha tido um enterro, já que tinha essa

louca ideia de ter suas cinzas cremadas e jogadas naqueles malditos rios.

Ela tenta se lembrar dos últimos pedidos do filho, de entender a morte como uma

passagem, e voltam a sua mente as memórias de um Alexandre tão plácido, quase que

como um Buda o que a acalma. Em paz ela decide ler ao diário.

Desde que a quarentena se iniciou, ao contrário de todos que não estavam em reclusão,

e que tiveram as suas rotinas desorganizadas, eu que já vivia minha própria

quarentena de forma caótica passei então a viver uma rotina e começava a ensaiar

momentos de lucidez. Com esse novo estado de ser, passei a observar de forma mais

atenta as redes sociais e como me comporto diante delas. A tal polarização citada

anteriormente era muito clara. Todos se sentindo muito certos, e orgulhosos das suas

verdades perfeitas não tinham o mínimo interesse em refletir sobre a opinião do outro.

Os algoritmos das redes sociais colocam o indivíduo em uma bolha, onde este se

alimenta apenas daquilo que corrobora o que já acredita: expostos aos mesmos

conteúdos, eram acorrentados a um sistema fechado em si mesmo, sem espaço para a

diferença, onde não ventilava empatia. Mas era possível ver todos perfeitamente de

direita ou de esquerda mostrando os seus dentes nos comentários dos sites de notícia

ou de algumas personalidades que alcançavam os dois espectros de pensamento

político.

Com aquela minha cara de cachorro surrado pela vida, fui até o banheiro tomar um

banho. Comecei a chorar alto. Minha mãe sabia que alimentar em mim esse sentimento

de vítima seria um ótimo analgésico, mas não me ajudaria em nada a sair desse estado.

Ela não sabia se eu queria chamar sua atenção para que sentisse pena de mim ou se

era uma manifestação genuína de dor. Decidiu que devia ser um pouco dos dois. A

água gelada fez com que eu me sentisse vivo. Era também uma tentativa desesperada de

mostrar para mim mesmo que estava bem. Eu, que agora era obrigado a usar máscaras

para me proteger do vírus, estas que contorciam as minhas orelhas e me deixavam com

uma cara de porco, acreditava que se usasse uma máscara por muito tempo, se

repetisse para mim, em voz alta quantas vezes fossem necessárias, que era forte e que

estava feliz, acabaria me transformando naquilo que aquela máscara ostentava. Isso

fazia com que as minhas dores se tornassem suportáveis. Era como se elas se

transformassem em um apêndice, um corpo sólido, mas neutro. Ao mesmo tempo, um

outro órgão, como que um terceiro olho, se abria no centro da minha testa e com ele

um espaço de expansão de consciência na minha mente. Esse meu novo olho, voltado

para as redes sociais me fez perceber que algo de novo nelas começava a surgir. Para

a maioria das pessoas, reféns do modo de viver do nosso tempo, este, o tempo, havia se

tornado um luxo inacessível. Mas agora que a pandemia os havia devolvido horas

livres, estas passaram a se expressar de forma diferente. Eu comecei a notar que as

notícias estavam mais longas do que antes. Os posts dos influenciadores do Instagram

não se resumiam mais à superfície como era comum. Este tempo ocioso os permitia se

debruçar sobre as leituras e produzir textos mais complexos. As conversas com meus

amigos que agora eram por videoconferência passaram a durar mais. A cultura do ego

tinha sofrido um forte golpe. O individualismo não mais se mostrava um valor, quando

se tornava nítido que para sobreviver diante da pandemia precisávamos um do outro.

Os posts do Instagram que antes eram recheados por selfies, fotos em academias ou em

lugares paradisíacos ao redor do mundo que agora não mais podiam ser visitados

perdiam espaço para imagens com frases, orações, e relatos de mundo que se dissolvia.

Obviamente, o novo convivia com o antigo, e nossas mentes ainda acostumadas serem

recompensadas com as curtidas aos nossos exercícios de narcisismo, nos conduziam a

mostrar fotos de viagens antigas e de nossos corpos malhados de pretérito nada

perfeito.

O almoço chegou e me dei conta de que não apenas engolia os alimentos, mas

conseguia sentir sabores que antes me escapavam ao paladar. Foi quando comecei a

notar que fazia um mergulho em profundidade dentro de mim mesmo. E que ao mesmo

tempo, conseguia estar mais conectado ao aqui e agora. Esses dois comportamentos,

um de estar ancorado no presente e o outro de me voltar para dentro de mim mesmo, as

vezes gerava um certo desconforto porque agora não mais fugia de encarar a

realidade, deixava de reagir a vida, mas respondia ao que me aparecia e integrava o

que sentia. Comecei a perceber padrões que se repetiam de forma inconsciente e que

não eram mais saudáveis e a buscar a gênese desses. Para me fazer entendível para

mim mesmo. Nessa viagem, questões como o meu flerte com os amores platônicos e

como este me distanciava de uma realização amorosa saudável vieram a superfície.

Eu fui um adolescente muito solitário. Um episódio de bullying que sofri muito novo

gerou em mim uma fobia social. Era como se depois daquele dia, eu tivesse decidido

sair do meu corpo físico. Isso foi fazendo com que eu me tornasse uma pessoa sem

muitas habilidades sociais e com poucos amigos. O cinema, a literatura e a música

então se tornaram meus amigos imaginários, onde eu encontrava respostas e

ferramentas para forjar minha identidade. A leitura de uma obra chamada “Os

sofrimentos do jovem Werther”, do escritor alemão Goethe, contribuiu, numa prática

que viria a se tornar corrente em minha vida: a idealização do outro e essa entrega a

amores não correspondidos. Eu buscava incansavelmente um amor que fosse perfeito,

quase que de forma obsessiva. Eu achava que amava demais, sem entender o quer era

amar, e rimava o amor com a dor. Não era genuinamente ingênuo como podia parecer

já que eu tinha noção do que estava por vir, mas essa persistência vinha de algo que

parecia ter origem em um pacto tácito que fiz comigo mesmo de me colocar em

situações que me provocassem sofrimento “real”, que pudessem ser entendidos pelos

outros, já que os meus sofrimentos advindos do transtornos de ansiedade e depressão

não eram vistos como causa para tal. Era uma variação performática da minha

vontade de estar no papel de vítima.

Canceriano típico, eu, caranguejo, me desfazia intencionalmente do meu exoesqueleto

(minha armadura), para me permitir ser flechado. Todas essas constatações me

trouxeram uma certa melancolia e em absoluto silêncio, toco no meu peito. Tento voltar

para o meu corpo, para o aqui agora e ao sentir minha própria pele saio da minha

mente e volto e me pego feliz por notar que não fui sugado pela porta que tinha aberto

com os meus demônios.

Também como na sabedoria hindu, do terceiro olho recém-renascido, o Ajna, brotava a

intuição. Ao mesmo tempo os outros dois olhos começaram a olhar também para fora.

A perceber o outro, a descobrir habilidades sociais que não tinha. Eu percebi que

olhando para o outro nos olhos, forjava com eles um momento instantâneo de

intimidade.

Como o “velho eu” ainda tinha terreno na minha mente, notava que ainda precisava

performar o que estava sentindo, que precisava mostrar ao outro o que estava vivendo

para transformar aquela bagunça em algo legítimo e decidi fazer uma chamada de

vídeo com um amigo. Ele atendeu e fez o papel de padre em um confessionário. Me

escutou e rapidamente me prescreveu ações que deveria tomar, que como orações me

redimiriam. E no intervalo de uma respiração, eu me desintegrei completamente.

Naquele instante, todo o meu mundo se dissolveu. Eu que começava a entender que

olhar para as coisas como elas eram deveria ser como procedimento cirúrgico para

retirar um câncer: doloroso, mas necessário. Suas palavras funcionaram como um

cortejo fúnebre. Foi como se halteres fossem arremessados ao chão, um depois do

outro, e este se abrisse e me fizesse perder o equilíbrio. Ele percebeu como tinha me

desconcertado e tentou trazer um assunto que me retomasse a zona de conforto.

Começou a disparar frases de efeito sobre política. Queimadas na Amazônia,

queimadas na Austrália. As conversas oscilavam entre jargões de Direita e de

Esquerda, e à medida que ele entrava no modo de piloto automático, os seus

argumentos se tornavam cada vez mais frouxos. Ele conseguia falar de forma

aparentemente eloquente e articulada sobre qualquer assunto, mesmo sabendo muito

pouco sobre o tema, e até no devir na conversa se apropriava de coisas que eram ditas,

banhava os seus argumentos à ouro e os entoava como se fossem seus, galvanizando a

atenção da plateia para ele. Mesmo sem qualquer audiência que não a minha, ele

aplaudia a si mesmo por sua perfomance e se sentia útil por estar me ajudando. Eu,

então ao perceber que ele também tinha incoerências, era devolvido a um terreno

habitual e comecei a tomar novamente posse do meu corpo. Agora, não mais em terra

estrangeira, ensaiava comentários sobre o que ele havia dito e ele então havia perdido

a sua potência de fazer com que me sentisse frágil. De uma forma invisível para ele, o

seu desejo de me ajudar havia sido alcançado.

Fui lavar os pratos, afinal de contas, talvez seja por lavar louças que se alcance o Céu,

e encontrei junto com a comida, que havia pedido por um aplicativo que lucrava sendo

intermediário entre os restaurantes e os consumidores, um bilhete. Nele, tinha uma

mensagem do dono do restaurante que dizia que se eu entrasse em contato diretamente

com o estabelecimento e assim teria desconto de 20%. Como um típico cidadão de

classe média de um país subdesenvolvido sul americano, onde a mão de obra humana é

barata, e que tem um passado escravocrata, é comum termos uma pessoa que trabalhe

de segunda a sábado no nosso lar, assumindo as atividades de limpeza e cozinha. Com

a pandemia, tendo uma mãe de 60 anos, que inicialmente foi apontada como sendo

parte de um grupo mais vulnerável às complicações mais graves da doença, eu decidi,

também para evitar que a pessoa que estivesse vindo trabalhar se expusesse a risco,

liberá-la. Como não tenho habilidades culinárias resolvi pedi comidas através do

aplicativo. A minha primeira reação ao ver o bilhete do dono do restaurante foi a de

achar justo, já que tenho uma visão de esquerda e acredito que as grandes empresas

exploram o trabalho para obter lucros desproporcionais. Ao mesmo tempo me veio a

mente, a lembrança de que em países que morei como os EUA e Canadá, esse tipo de

coisa não era comum. E apesar de saber que eles também exploravam a mão de obra,

ao menos, ofereciam condições um pouco mais dignas aos seus cidadãos. Nesses

países, por exemplo, não é comum o trabalho de empregados domésticos. Isso me fez

pensar se a resposta estava no fato deles terem avançado nas leis trabalhistas. E

comecei também a me questionar se em sistemas que funcionam de forma um pouco

menos injusta, as pessoas eram mais obedientes aos pactos sociais e mais propensas a

não burlar as leis do Estado assim como às instituições e empresas, como a que estava

usando para comprar comida.

Como uma mãe olha orgulhosa olha para o seu filho recém-nascido, olho para esse

novo ser que brota de dentro de mim. De onde não esperava mais nada, a não ser

suportar os galhos de uma velha mangueira que se voltavam para o chão e albergava

frutos podres, dos quais me alimentava e me envenenava. Talvez esse novo estado de

ser que olhava para cima, e assim conseguia ter uma melhor visão do todo, fosse capaz

de me fazer encontrar as ferramentas para me tornar uma árvore frondosa. Esse ser

nasce com algum esforço e dor. Como vindo de um parto natural, arrancado a fórceps,

ele chorava ao vir ao mundo, tinha vontade própria de viver e me arrastava consigo

criando entre nós uma lealdade ao que nos tornávamos. Homem e seu fruto. Vou

dormir com uma sensação de serenidade que já não me era estranha.

Ao acordar, vejo mensagens de meu ex-namorado, alguém com quem não tinha mais

contato. Que tinha como em um precavido gesto de sensatez, me excluído da sua vida.

Eu, que estava sendo uma presença tóxica, com uma ansiedade constante me tornava

uma presença desagradável. Alguém com uma camada intradérmica de tensão, havia

afastado muitas pessoas, inclusive ele. Liguei para ele e começamos conversar sobre

como nos perdemos. Eu olhei e tentei devorar vorazmente os seus olhos que me

responderam com contemplação e curiosidade. Ele, em gesto análogo, queria ver com

seus próprios olhos se tinha me tornado o ser que os nossos amigos em comum haviam

anunciado. Eu aos poucos passei a sentir desinteresse em constatar que apenas agora,

em que começava a sair de uma fase difícil, merecia o seu interesse. Eu percebo que

não preciso mais dele. Que agora, começava a gostar de estar comigo mesmo, e notava

como meu amor de antes também era egoísta e condicional. E senti vontade de

desligar. Ensaiei uma desculpa de que precisava retomar os estudos e encerrei a

conversa. Sou pego pela ideia de que um admirável mundo novo que fosse realmente

admirável estava surgindo dentro de mim.

Volto para a escrita dos meus diários da quarentena. Através deles consigo me revelar

de uma forma que não consigo através da fala. Diante da página em branco, espaço no

qual posso rever o que sinto com distanciamento emocional, consegui abrir buracos

nos muros que eu mesmo ergui para me proteger. Com esse novo insight, achei

interessante me voltar a textos antigos em busca desse meu eu sem véus de proteção.

Neste exercício de revirar as gavetas da minha mente encontro um texto que havia

escrito. Eram os diários de uma viagem feita com minha mãe para comemorar o seu

aniversário. No voo entre Nova Delhi e Kuala Lumpur, estava com ela ao meu lado e

ouvi do comissário de bordo um comando já ouvido antes centenas de vezes, mas que

naquele dia, adquiriu significado jamais experimentado antes, quando eram apenas

palavras ocas de sentido que ouvia com o cérebro no modo automático.

O comando era algo como: em caso de acidente, primeiro coloque suas máscaras,

cuide de você e depois dê assistência a quem estiver ao seu lado. Talvez por ter sido

dito com sotaque indiano, esse comando ressonou como sinos dentro da minha cabeça,

que me lembraram de vozes que ouvi de terapeutas, tarólogos, psiquiatras e gurus.

Todos em uníssono diziam que eu precisava romper o cordão umbilical. (De um tempo

para cá com anos de cuidado psiquiátrico, dissolvi e dessacralizei a aura que se

costuma atribuir a figura deste. Acredito que não tem como se cuidar do corpo e da

mente se não se voltar os olhos para o espiritual, que ao menos no discurso formal

médico é ignorado por muitos.) O aviso do comissário me trouxe novamente a tal

questão do (necessário?) rompimento do cordão umbilical com minha mãe. De que

primeiro preciso cuidar de mim: porque não podemos dar o que não temos: saúde

mental. Como me equilibrar nessa corda bamba, entre devolver o cuidado e o amor à

única pessoa que me amou incondicionalmente de forma que fosse saudável para os

dois. É engraçado como a vida, quando se está disposto a ler e ouvir os seus sinais, nos

ensina das mais inusitadas formas. Às vezes, funciona como um espelho, mostrando, no

caso da minha relação com minha mãe, através de ecos de outras relações que tive, em

que estive na posição inversa, precisando de ajuda e cuidado. Eu que recebi (de

algumas pessoas) essas lições de forma dura e não empática, o que me feriu muito,

percebo que isso também me fez crescer. Eu decido enterrar esses corpos, e ser luz.

Isso tudo me leva a uma questão: sabendo o quanto doeu, eu posso transmitir essas

lições de forma que não a machuque. Para mim, resolver essa equação era como

buscar através de um campo enevoado. Em alguns momentos, era uma tarefa exaustiva,

mas ao menos tempo tão recompensadora, a de ver nos olhos doces, cansados e frágeis

de minha mãe uma semente de uma recém instaurada vontade de viver. Ela que por

tanto tempo sofria calada. Para mim foi algo monumental, como as torres Petronas de

Kuala Lumpur ou o Taj Mahal. Relendo esse texto vejo que posso responder agora,

com essa nova consciência que se tornava cada vez mais parte do meu DNA, ainda

como algo ainda embrionário, mas dessa vez, mais consistente, que havia espaço para

a empatia. E para reconstruir as nossas histórias em um novo campo, este agora um

terreno fértil para o amor. Ignorei mensagens de amigos com quem não tinha uma

relação saudável e decidi fazer uma tapioca para minha mãe e fiz isso com todo o meu

amor. Dormi novamente em paz.

Essas palavras fizeram com que Luísa desabasse. Ela não conseguia acreditar que

quando o seu filho finalmente tinha conseguido lidar com os fantasmas do seu passado e

os integrar, que logo no momento em que a pandemia dava sinais de que finalmente

poderia ser algo de fato controlável e que era cada vez mais incomum alguém morrer de

alguma de alguma complicação desta, seu filho tivesse morrido. Ao mesmo tempo, ela

sente uma certa ternura no coração, por acreditar que seu filho estava em paz. Se

realmente havia um Céu, a pessoa que ele havia se tornado estaria descansando nele.

Era hora de deixar Paris. Ela vai para o aeroporto com certa antecedência pois agora só

havia um na região da Grande Paris e mesmo com o reduzido fluxo de pessoas, ela sabia

que precisaria de tempo para ir a casa de câmbio, vender os seus francos que não havia

gasto e comprar escudos. (Saudades da época em que se podia transitar por quase toda

Europa Ocidental com apenas uma moeda.) Ela chega no aeroporto e se apressa em

entrar na fila para fazer o exame para as variantes de Covid-9 e aferir a sua temperatura.

Como a vacina era muito recente, essas medidas ainda estavam em vigor.

Ao entrar no avião, resolveu deitar-se um pouco, ocupando as três poltronas livres.

Como medida de proteção, os passageiros ainda não podiam se sentar em poltronas

contíguas. Confortável, ela volta ao diário.

Acordei com um pouco de dor nas costas. Fiz um pouco de hatha yoga e tive a sensação

de que a dor aumentou, mas na verdade foi a minha percepção e consciência da dor

que aumentaram. Duas coisas me surpreenderam nisso. A primeira foi como a minha

capacidade de auto análise, especialmente a corporal havia aumentado nessa

querentena. A segunda foi a forma de agir diante da dor. A minha reposta habitual

seria a de “eliminar o mensageiro” controlando ou suprimindo a dor. Eu comeria algo

que me desse prazer, colocaria algumas pílulas para dentro e sedaria a dor. Eu que

costumava evitar a qualquer custo estar comigo mesmo, especialmente quando meu

corpo me causava algum desconforto, comecei a entender que a aceitação do que

estava sentindo independente de ser bom ou ruim seria um portal para a

transformação. Hoje também o facebook me lembrou que há quase cinco anos, entrava

em um avião deixando minha mãe, minha cidade, amigos e muita coisa para trás.

Luísa se lembra dessa minha partida com muita dor, e ao mesmo tempo por um instante

chegou a sentir falta de quando ainda existia tal rede social de Mark Zuckerberg, que

tinha decidido extinguir a plataforma e investir grande parte do seu capital na busca de

uma vacina, para a doença que causava tantos mortes, e doado outra parte do patrimônio

na ajuda da reconstrução econômica do seu país. Ela volta a se sentar, para responder ao

comissário de bordo dizendo que aceitava apenas um Smothie de vitaminas. E volta á

leitura.

Levava na bagagem muitos sonhos e entre estes, o principal deles era o de conseguir

independência emocional. Comecei a perceber que essa minha trajetória em direção a

luz não seria retilínea, mas de altos e baixos. De subidas e grandes quedas. Isso me

arrefece um pouco o otimismo e me faz criar menos expectativas em relação ao que

vivo agora. No entanto, compreendia que era fundamental se render ao que quer que

fosse. Que isto se praticado de forma sincera era responsável pelo sentimento de

contentamento.

Eu senti vontade de agradecer ao princípio cósmico universal, esse princípio coletivo e

compartilhado entre todos que pode ser chamado de Deus, Brahma, Buda ou

simplesmente de Presença. Quis agradecer aos meus pais, esses dois seres lindos que

me trouxeram a essa existência e que transmitiram a mim todo o amor que tinham

capacidade de oferecer. Que foram responsáveis por ajudar a construir essa pessoa

que hoje começo a ter orgulho de ser. Ao meu meu guru do ashram em San Francisco

que recebeu essa pessoa vinda de todo tipo de estrago. A meu mentor espiritual no

neste local me apresentou a leituras e especialmente a práticas que mudaram a minha

vida, a meu tio que me acolheu e me fez enxergar a importância da austeridade, da

disciplina e me iluminou com sua inteligência.

Luísa, agora sentia florescer dentro de si, uma flor com perfume especial, como uma

flor de cerejeira, que brota trazendo renovação e esperança. Conhecera o seu filho desde

o nascimento mas nos seus diários, que como a caixa preta de um avião guardava os

últimos gritos dos seus sobreviventes, descobriu um Alexandre que não havia

concebido.

Sua próxima parada era Lisboa, destino final da última viagem dos dois que tinha

adquirido para Alexandre depois de outras visitas quando a capital portuguesa não tinha

chamado a sua atenção, um significado importante. Ali, com sua mãe, tinha sentido algo

como um sentimento do Brasil por Portugal, de paternidade. Reconhecia nas ruas,

Igrejas e praças locais sua cidade natal, Salvador. E junto com a nova forma de amar sua

mãe, veio um amor pela cidade. Se reconheceu na tristeza do fado, mas sentiu também

muita alegria na capital lusitana. Ao chegar na cidade, Luísa olha para as ruas com

nostalgia e vai até o bairro Príncipe Real, que era o favorito do seu filho, e havia se

tornado um dos epicentros da Moda na cidade. Ela para e lembra com desconforto desta

palavra que significa centro de um terremoto e havia sido usada para nomear os países

que apresentavam o maior número de mortes pelo vírus, o que foi o caso do Brasil. De

lá vai para a Torre de Belém e joga o resto das cinzas do seu filho no rio Tejo. Decide se

sentar ali mesmo e ler mais um pouco do diário.

Quando cheguei em San Francisco, fumava uma carteira de cigarro por dia, tomava

ansiolítico para dormir e uma remédio a base de anfetamina para acordar. Vinha de

alguns episódios de síndrome do pânico que começaram a me acometer nos anos em

que morei em Toronto devido ao inverno severo em conjunto com tantas novas

atribuições que precisei assumir e a redução drástica do meu remédio para transtorno

de déficit de atenção. Lembrei com gratidão de um dia em que fui a uma clínica médica

em Toronto atrás de uma receita para comprar remédio para dormir, coisa que não

fazia a cinco noites e fui confundido na rua com um viciado em metanfetamina. Uma

garota que me via me tremendo e agindo de forma estranha me indagou se estava sob

efeito da droga. Agradeci também ao rigoroso sistema de saúde de Toronto que devido

ao seu controle de venda de medicamento de prescrição medica me fez de forma

forçada a diminuir o uso desses remédios, os quais era dependente e abrir espaço para

esse processo de cura que agora sinto estar se finalizando. Em tempos de cólera, eis

que nasce em mim cristal da gratidão.

Luísa se lembra com afeto do filho dizendo que não comesse o quinto pastel de Belém,

que ela precisava tomar cuidado com o nível de glicose porque ele não queria perdê-la

para uma doença. Ela nunca imaginava que seria ela quem o perderia. Mas depois de

terminar o primeiro capítulo do diário do filho, ela se sente grata como ele. O mundo,

pós pandemia, havia se tornado tudo aquilo pelo qual o filho havia esperado durante sua

vida. Um mundo em que as pessoas tinham entendido a importância da empatia, da

solidariedade e da gratidão. No qual a desigualdade social havia reduzido absurdamente

e o medo havia sido substituído pela esperança. Não havia mais a ameaça de bombas

nucleares ou de governos totalitários. As pessoas não mais precisavam abrir mão da sua

privacidade em troca de segurança. O vírus, apesar de trazer tantas tragédias, ceifar

tantas vidas, inclusive a do ser que mais amava, tinha ajudado a melhorar o equilíbrio de

poder entre os países, já que atingiu de forma mais violenta os países com economias

mais avançadas e misteriosamente poupou muitos países com economias mais fracas.

Ela decide dirigir para o hotel no centro de Lisboa. Pensa em começar o segundo

capítulo do diário. Que outras partes do seu filho se revelariam por entre as páginas? Ao

chegar no hotel chama o elevador. Chegando no último andar, a porta do quarto se abre

ao reconhecer sua íris. Ela sente o doce perfume do difusor de aroma e vai ao banheiro.

Ela se olha no espelho e a Luísa que vê, assim com seu filho que havia encontrado no

diário e o novo mundo não tinha nada a ver com a Luísa de 2020. Ela também havia

morrido e renascido. Senta e lê a primeira fase do segundo capítulo.

Enfim, vivo!

Ela então resolve fazer uma oração havaiana ensinada por Alexandre, onde sabia que

estaria conectada com o presente e assim com EU maior, que engloba em si todos os

seres assim como o seu filho. Ela repetiu um mantra que seu filho adorava - Eu estou

aqui e agora-

. Viveu um instante de conexão profunda com o cosmo e olhou para o céu.

Assim como seu filho, através da dor, sua alma havia encontrado a paz. Dessa forma

nascem todas as coisas belas. E dessa vez afirmou para si mesma: - Que lindo dia!. E ao

contrário de quando fez essa declaração ao chegar em Paris, era totalmente genuíno.

Tadzio VogleR



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