Crítica do filme “Noites de Cabíria”, de Frederico Fellini.
Noites de Cabíria – Federico Fellini
Daniel Carvalho
Ma la vita continua
Cabíria busca um amor perfeito, de maneira quase obsessiva — um amor que salve, que redima. Ela ama demais, sofre demais. É uma mulher de coração vasto e ingenuidade desarmada, que insiste em crer na bondade humana mesmo diante da repetida crueldade. Sempre que cai, levanta-se com a cabeça erguida, sonhando que um dia será diferente. Cabíria é, apesar de tudo — e sobretudo — amor. E poesia. Por trás da casca, existe esperança. Cabíria ainda é sonho.
Lançado em 1957 e dirigido por Federico Fellini, “Noites de Cabíria” tem como protagonista a inesquecível Giulietta Masina — esposa do diretor e intérprete de uma das personagens mais comoventes da história do cinema.
Fellini abre o filme com uma cena metonímica: Cabíria beija o namorado à beira de um rio, até que ele a empurra, quase a matando afogada. Ele foge com sua bolsa, seu dinheiro, suas ilusões. Essa sequência de expectativa e frustração se repetirá ao longo da narrativa, como um destino cíclico do qual ela tenta escapar.
Cabíria tem sobrancelhas negras e horizontais, como as de um personagem de cartoon. Seu caminhar, os ombros encolhidos, o rosto que resplandece: tudo nela parece performance. Mas talvez não seja. Talvez essa seja mesmo Cabíria — autêntica, singular, trágica e cômica na mesma medida. Uma alma que resiste ao grotesco com gestos de graça.
Depois da tentativa de assassinato, ela nega a realidade. Diz que “caiu no rio” e que “Giorgio foi buscar ajuda”. Queimando roupas e ilusões, retorna às calçadas e às amigas que zombam: “Onde está seu Giorgio?”. Como se a história se repetisse em tom de farsa.
Ela cruza então com Alberto Lazzari, um astro de cinema que a leva a uma noite de aparente glória. Mas logo a trata como uma distração descartável. Ao acordar ao lado de um vaso, vê a namorada de Alberto. Recolhe-se ao banheiro, envergonhada, escondida entre os cães — a imagem crua de sua posição social e simbólica.
Surge então Oscar. Um homem que, aparentemente, a vê de verdade. Ele a ouve, não a julga por sua profissão, e a pede em casamento. Pela primeira vez, Cabíria se permite crer. Vende tudo: casa, móveis, roupas. Desfaz-se do exoesqueleto que a protegia da vida para renascer. Mas Oscar é só mais um. E pior: é o mais cruel.
No bosque, à beira de um precipício, ela diz: “A vida é bela, no fim das contas”. Ele sua, hesita, e a pergunta se ela sabe nadar. Cabíria, distraída, diz que não — “Imagina, quase me afoguei uma vez… fui empurrada, acredita?” — e nesse instante, ela vê. O rosto dele, o silêncio, a tensão. Tudo se revela. A ficha cai. Ela pergunta: “Você quer me matar?”. Ele não responde. Ela grita, suplica que a mate. Depois, entrega a bolsa. Ele foge.
Cabíria cai. Mas não morre. Sobrevive — e essa sobrevivência é seu milagre. Sozinha no bosque, encontra uma estrada. Um grupo de artistas passa por ela cantando, rindo. Aos poucos, Cabíria se permite sorrir. E nesse sorriso, com uma lágrima negra que desce pelo rosto, ela nos revela algo maior: a salvação não vem do amor romântico, mas do amor que sobrevive dentro dela mesma.
Ela encontra Cabíria. Essa mulher desprotegida e dilacerada, mas viva. A dor foi o preço, mas o crescimento, a recompensa.
A última cena é uma epifania. Um lembrete de que mesmo quando tudo falha — os homens, os deuses, os sonhos — ainda podemos acreditar na beleza da estrada. E seguir. Mesmo que chorando.
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